lre sódesign: Luis Fernando Veríssimo

domingo, janeiro 15, 2006

Luis Fernando Veríssimo

Os pingüins e a criação

Certas características do reino animal só podem ser produto de mau planejamento ou obra de algum "designer" um pouco distraído


Talvez se encontrassem argumentos mais fortes a favor do tal "design" inteligente por trás de tudo defendido pelos antievolucionistas não nos seus triunfos mas nos seus fracassos. Todo o processo de acasalamento e procriação dos pingüins mostrado no magnífico documentário a seu respeito é tão pouco funcional que fica difícil enquadrá-lo na teoria da evolução, que, afinal, trata da sobrevivência do mais prático. Só pode ser o produto de mau planejamento. Um "designer" teimoso que insistiu com seu plano contra todas as evidências de que seria mais racional os pingüins namorarem e terem seus filhos perto da água, de onde vem seu alimento, em vez de marcharem para o interior só para respeitarem uma tradição e serem obrigados a cumprir todos aqueles rituais de idas, vindas e trocas de ovos entre fêmeas e machos, com óbvio risco para as crianças. O que os salmões precisam fazer para terem direito a uma família, subindo rios contra a correnteza com grande esforço para chegarem ao seu local de origem, é outro exemplo de projeto mal pensado que já teria sido corrigido se a evolução fosse ao acaso, como queria Darwin, e premiasse com a sobrevivência quem tivesse desenvolvido um método mais simples. Se a Natureza, e não um "designer" anônimo, fosse o responsável pela vida sexual dos salmões. Como este, há muitos outros casos de erros, contra-sensos, anomalias, esquecimentos - os mamilos masculinos, por exemplo, ou a persistência das unhas do pé nos humanos, que não existiriam mais se Darwin tivesse razão - atestando a existência de um "designer" inteligente. Só um pouco distraído.

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Uma referência à "criação de Deus" que não estava na primeira edição de A origem das espécies de Darwin foi acrescentada na segunda, uma tentativa dos editores de atenuar a reação das igrejas cristãs à teoria revolucionária. Deve continuar nas edições atuais. A reação nunca diminuiu. Nos Estados Unidos, hoje, travam-se batalhas judiciais sobre a proibição de se ensinar o evolucionismo, ou a obrigação de se ensinar o creacionismo como alternativa ao evolucionismo, em sistemas escolares estaduais. O fortalecimento político da direita religiosa americana, que é anterior a Bush mas aumentou com ele no poder, devolveu à questão o imediatismo que tinha no século 19 quando a teoria era nova, e conceitos como o do "design" inteligente são para atualizar pelo menos o vocabulário dos que pregam uma interpretação literal da Bíblia. Como a teoria do "design" não alude especificamente, só implicitamente, a Deus como o criador, ela pode proporcionar um começo de diálogo. Dizem que Darwin entrou no céu cristão, para a sua grande surpresa, mas durante anos Deus recusou-se a recebê-lo até que ele reconhecesse sua autoria das espécies, o que Darwin rechaçava. Agora já estão conversando. Os dois fizeram concessões, abandonaram suas reivindicações radicais, e suas conversas costumam começar com a frase "Admitamos, como hipótese, que...". O estranho comportamento dos pingüins deve estar sendo muito citado.


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O documentário é fascinante, mas eu preferia que o texto fosse mais informativo e menos poético e engraçadinho. Mas é claro que só se pode admirar animais que se submetem daquele jeito a tormentas, temperaturas geladas e toda espécie de privação para transmitirem tanta beleza. Estou falando, claro, da equipe de filmagem, que pertence a outra espécie notável, apesar de alguns enganos do seu "designer".

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E não adianta acionar o seu Emílio, Rafael, o texto é do Veríssimo mesmo, ok?

ps: piada interna...

via: Zero Hora